Matéria original publicada no
Blog da História - Editora Record.
Esqueça o Colt 45 ou a Winchester de John Wayne. A arma mais icônica do mundo atualmente é o Kalashnikov. Barato, resistente, leve e eficiente, o fuzil soviético tornou-se cinema de guerra irregular, guerrilha, insurgência e terceiro mundo. Dos vietcongues que derrubaram o mito da invencibilidade americana aos traficantes cariocas que deram uma boa lida nas instruções de Carlos Marighela, passando pelos israelenses, é quase impossível que alguém que tenha disparado um tiro em combate desde os anos 60 não tenha estado em contato com o formidável rifle, segurando-o ou sob sua mira.
O conceito por trás deste ícone armamentista é alemão e apareceu na II Guerra Mundial. A espetacular tomada de Creta por paraquedistas, apesar de seu brilhantismo, acabou custando muito caro. Os invasores nazistas, saltando de aviões e completamente sem apoio, não podiam carregar nada pesado, então estavam basicamente armados apenas com submetralhadoras (as famosas MP40), para ter volume de fogo. Mas, frente aos britânicos com metralhadoras de verdade e fuzis, as MP40 não tinham alcance para responder. Se os germânicos pretendiam continuar usando aquelas tropas de elite, era preciso armá-las com algo que pudesse atirar longe como um rifle e também ser capaz de rajadas.
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FG 42 |
A arma desenvolvida, o FG 42, apesar de sua eficiência, era pesada (virtualmente 5 quilos) e cara de produzir. A ideia de substituir a combinação fuzil-metralhadora era óbvia no bipé dobrável que servia para apoiar o fuzil quando atirando em rajadas. Caro de produzir, criado numa época em que os paraquedistas já não eram mais usados em assaltos aeroterrestres e os nazistas estavam tomando uma coça dos aliados e ficando sem recursos, o rifle teve pouco mais de 5.000 unidades produzidas. Sua obra-prima foi o resgate de Mussolinni, numa ação de comandos, para quem o FG 42 era o armamento perfeito.
Mas embora ele tenha surgido primeiro, ao mesmo tempo o exército estava criando a sua própria versão para uma nova e revolucionária arma portátil. Quando os cartuchos metálicos e as novas técnicas de metalurgia surgiram, os militares queriam mais e mais. Mais alcance, mais precisão e mais energia cinética, para manter o inimigo longe demais para que seus infantes pudessem usar seus rifles. Assim surgiram fuzis que podiam acertar um alvo a 800-1.000 m de distância. A Guerra dos Boêres, a primeira travada com esse novo armamento pareceu confirmar a utilidade dessas especificações.
Só que os generais de alto-comando esqueceram que os Boêres eram praticamente exércitos de caçadores. Ou seja, homens que usavam suas armas na vida civil e que aperfeiçoaram sua pontaria durante anos. Seguindo essa linha de pensamento, os britânicos obtiveram resultados espetaculares na primeira batalha de Ypres, onde a mira precisa de seus soldados causou o que os alemães conhecem como "O Massacre dos Inocentes" devido ao grande número de jovens voluntários abatidos. O problema é que as baixas que os ingleses sofreram também foram custosas - era necessário muito tempo para treinar fuzileiros tão bons, tempo indisponível numa guerra.
Conflitos importantes sempre acabam sendo travados por conscritos contra conscritos, homens recrutados e treinados rapidamente para chegarem logo à linha de frente. No calor da batalha, sob fogo e explosões, com fumaça e detritos obscurecendo a visão, esses viventes teriam sorte em enxergar um inimigo a 800 metros, o que dirá acertá-lo com seus pouco exercitados dotes de atirador. Atingir um alvo a 200 metros seria uma estimativa muito mais realista.
Então, raios, para que alguém precisava de um cartucho tão poderoso quanto aqueles usados pelos exércitos todos? Submetralhadoras, que utilizavam munição de pistola, não tinham alcance e potência suficiente. O ideal era partir para uma alternativa, algo entre os dois, com força suficiente para um tiro de precisão e para rajadas.
Com um cartucho menos potente, a arma não precisava ser tão pesada. Quando disparada em rajadas, o coice não seria tão forte a ponto de tornar a mira inviável. Mais leve, seria mais prática de manusear uma vez atingidas as trincheiras adversárias, com o tiro automático, mais inimigos poderiam ser abatidos com mais felicidade. Enfim, o rifle perfeito: eficiente na defesa e podendo ser usado como uma submetralhadora, uma baioneta de longo alcance, no ataque. Mesmo quando defendendo, rajadas curtas poderiam aumentar a chance de atingir o soldado adversário que avançasse. No entanto, foi sua ótima adequação ao ataque que deu o nome ao rifle assim criado: fuzil de assalto.
A nova arma recebeu a denominação MP44. MP de Pistola Automática (ou submetralhadora), porque a ideia de se criar um novo cartucho havia sido vetada por Hitler, dadas as dificuldades de logística. E Hitler podia ser muito desagradável quando contrariado. No entanto, o rifle, enviado em pequenos números à frente oriental, fez tanto sucesso que inúmeras requisições do novo armamento começaram a chegar às mesas do alto-comando. E, mesmo descoberta a infração cometida, os responsáveis sobreviveram para contar a história. E o MP-44 recebeu seu nome correto, Stg 44, ou Fuzil de Assalto (modelo) 1944
O MP44, o primeiro verdadeiro fuzil de assalto do mundo, foi muito mais usado no fronte oriental do que contra os americanos & ingleses lá pelos lados do Canal da Mancha. E, como sempre acontece, o povo contra quem uma boa arma é usado costuma ser quem mais fica impressionado com ela (cf. tanques na I Guerra Mundial, que se tornaram uma obsessão alemã).
Os soviéticos tinham ido à guerra com um velho fuzil semiautomático, mas em quase todas as fotos da campanha seus soldados pareciam estar sempre armados com as "Pepêsha", a onipresente metralhadora de baixo custo (como quase todo o armamento russo), ideal para suas tropas recrutadas entre uma população geralmente de baixa instrução. Como toda submetralhadora de então, usava cartuchos de pistola disparados através de um cano usualmente de 20 cm (os de revólveres costumam ter cerca de 10). Maiores medidas acarretariam mais peso e deixariam a arma incontrolável nas rajadas.
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O MP44 alemão |
Quando os russos viram a ideia alemã de um cartucho intermediário, com a potência entre o de pistola e de fuzil, capaz de ser disparado com precisão a distâncias bem maiores do que as balas de submetralhadoras, eles ficaram impressionados. Assim que acabou o conflito, começaram a desenvolver um desses rifles de assalto. Os soviéticos, sabendo do potencial industrial de seus inimigos, sempre deram prioridade ao baixo custo e facilidade de fabricação de suas armas. Além disso, queriam aproveitar a munição menos portentosa para diminuir o peso do equipamento. Foi daí que recomendaram a Mikhail Kalashnikov, então um jovem de menos de 30 anos e que ainda hoje está vivo, que usasse aço estampado em seu projeto.
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O AKM, a versão em aço estampado do AK-47. Note-se a semelhança com o MP44, principalmente a haste acima do cano que conduz os gases sob alta pressão para armar o mecanismo de disparo |
O desenho básico do AK-47 (Automat Kalashnikov 1947, ou seja, automático de Kalashnikov modelo 1947) é bastante similar ao do MP44. Como seu antecessor nazista, o fuzil russo usa um mecanismo de recuperação de gás para remuniciá-lo. Um orifício na parte superior do final do cano recolhe os gases em expansão decorrentes da explosão da pólvora (se localizado antes, as pressões danificariam as peças). A haste na parte de cima dos dois rifles carrega esse gás sob alta pressão até atrás da câmara, onde ele empurra o ferrolho, ejetando o cartucho usado e abrindo espaço para que a mola do carregador empurre outra bala pronta para o disparo.
Os soviéticos não dominavam a estamparia do aço ao final da II Guerra. A técnica é basicamente bater uma prensa numa chapa de aço para literalmente imprimir a forma desejada nela. Aparentemente simples, rápida e barata, exige no entanto maquinário de primeira. Os primeiros AK-47 literalmente desmontavam-se ao atirar, estourando os rebites que prendiam as lâminas mais grossas às mais finas. Foi preciso voltar a usar metal usinado e fundido para construir o fuzil até meados da década de 50, quando finalmente a metalurgia russa dominou o estampamento.
Foi então que o AK-47 floresceu. Na verdade, a versão estampada recebeu o nome de AKM, mas as diferenças externas eram tão poucas que todos os meios não-oficiais continuaram usando a nomenclatura antiga. O peso desceu de quase cinco quilos para apenas 3.100 gramas. Era um fuzil e uma metralhadora, uma arma leve que até adolescentes podiam carregar. Foi com ele que começou verdadeiramente a era do conflito não-convencional, quando quaisquer tropas rebeldes podiam ser armadas rapidamente, por baixo preço e em grande quantidade.
Enquanto isso, os americanos, com seus problemas de autoafirmação através de armas, sempre querendo tudo mais forte, mais potente e maior, obrigavam a recém-fundada OTAN a aceitar como padrão a sua munição 0.30, a mesma usada pelo Garand, o melhor fuzil semiautomático da história e ícone da infantaria americana na II Guerra. Eles não compreendiam o conceito do cartucho intermediário e, por serem quem realmente mandava na OTAN, forçaram seu ponto de vista até no rifle que muitos dos países-membros estavam adotando, o FAL belga, originalmente desenhado para uma bala menos portentosa, e até hoje armamento padrão do exército brasileiro.
Já os americanos adotaram para eles o M14, basicamente um Garand preparado para disparar também automaticamente. Como o FAL, ele acabou sendo uma arma pesada, grande e pouco manobrável no disparo em rajada no corpo a corpo (embora tenha se tornado o mais preciso fuzil de assalto de todos os tempos). Enquanto isso o Kalashnikov ia dominando o mundo e se mostrando superior em combate, principalmente no Vietnã. No decorrer deste conflito os ianques desistiram do calibre .30 e adotaram o .556 e o hoje inconfundível M16 (aqui no Brasil usado pelos traficantes em sua versão civil AR-15).
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M16 |
O M16 usava plástico e ligas leves extensivamente. Como temiam os militares da era do semiautomático, seu mecanismo complicado mostrou-se também frágil em combate, com seu cano de pequeno diâmetro suscetível a bloqueios por sujeira. A solução foi cromar a alma do cano, o que tornou o rifle ainda mais caro, e instalar-se um ejetor manual para destravar o fuzil.
Enquanto isso, o Kalashnikov, muito menos sofisticado, com seu mecanismo e fabrico simplificados, mostrava-se extremamente resistente às condições de batalha. Poeira, areia, gelo, umidade, nada disso parecia afetar o rifle. Nos anos 70, os soviéticos diminuíram o diâmetro do cano para utilizar também o calibre .556 (adotando o nome Ak-74 que, como sempre, ninguém usa extraoficialmente) e ainda assim a arma continuou mostrando-se resistente e incansável.
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O AK-74 desmontado. Poucas peças, fáceis de soltar, facilitam a limpeza e a manutenção em combate |
O AK-47 é o fuzil mais difundido da história. Até os israelenses adotaram uma arma baseada nele. Infindáveis vezes os dois lados que se defrontavam estavam armados com ele. Apesar da adoção cada vez maior de desenhos futuristas e "bullpup" (1) como os Steyr, Famas e o L85, ele continua sendo a superestrela da guerra. Afinal, foi com ele que na Guerra do Vietnã pela primeira vez o fogo de armas portáteis foi a maior causa de baixas em batalha, desbancando pela primeira vez o temível e agigantado canhão.
(1) Os fuzis "bullpup" têm o carregador na coronha, como as pistolas, diminuindo em muito o seu comprimento. Parece simples, mas criou vários problemas de equilíbrio.
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